Numa reviravolta que surpreenderia os maiores nerds dos anos 80 e 90, jogar RPG é cool agora. E surfando nessa onda, brotam sempre jogos diferentes tentando beber da fonte. VED vem nessa, trazendo o mundo dos RPGs de mesa para seu console. Mas será que foi um acerto, ou falha crítica?
Sobre VED
Numa jornada que começou em 2013, um grupo de três irmãos artistas da Lituânia decidiu realizar um sonho: criar um jogo. Para isso, fundaram a Karaclan. O jogo começou só com artes, até que perceberam que teriam que programá-lo. A jornada para programá-lo atravessou gerações e diversas plataformas, bebendo de diversas fontes, até que, depois de 5 anos, conseguiram sua primeira chance, e tiveram o jogo rejeitado por diversas plataformas.
Entendendo os erros, e se envolvendo cada vez mais no mercado de games, VED foi indicado ao prêmio DevGAMM, no qual não ganhou, mas a equipe recebeu diversos feedbacks. Algumas demos e melhorias depois, em janeiro de 2020, com a história terminada e uma demo bem feita, VED teve seus primeiros grandes progressos, e depois de mais de 40 e-mails enviados para produtoras, com apenasduas respostas, a Fulqrum Publishing decidiu investir na ideia e ajudar a concluir e publicar o jogo.
Recomendação de Compra
The Legend of Zelda: Echoes of Wisdom
Lançamento: 26/Set/2024
Com mais algumas tentativas e erros, VED teve uma demo gratuita pública em julho de 2022, até que finalmente foi lançado há algumas semanas para todos os consoles e PC.
História
Sendo um jogo de RPG, a História é talvez o ponto mais importante. E aqui, é tanto um ponto bom quanto o mais fraco de VED.
Depois de um prólogo (jogável) que explica como tudo começou (spoiler – decisões amorosas entre um homem e uma fada causaram estragos), umas décadas atrás, você aqui assume o papel de Cyrus, um jovem adulto deficiente visual que acaba de se mudar para a cidade grande, Micropolis, em busca de um emprego, dinheiro e uma vida melhor. Ele vai morar com sua tia, e logo no primeiro capítulo, a gente descobre que ele não é uma pessoa comum. No meio de um incêndio, ele acidentalmente se teletransporta para um mundo mágico. E aí, temos basicamente, os dois focos da história.
De um lado, o mundo mágico. Cada vez que Cyrus se teletransporta, ele para no mundo mágico, onde precisa ajudar a construir um paraíso para os trogloditas, navegando por cenários lindíssimos e explorando lugares e enfrentando inimigos. A cada troglodita salvo, mais habilidades ficam disponíveis para serem desenvolvidas, e a cada inimigo derrotado, você recebe pontos que usa para construir instalações na vilinha dos trogloditas, que por sua vez, voltam para você como novas habilidades para usar em combate.
Durante suas explorações, você vai encontrar situações em que precisa rolar dados (sempre 1d20), e dependendo do resultado, receberá bênçãos ou maldições, além de alguns itens que podem vir a ser úteis eventualmente (ou não).
A cada vez que termina uma rota no mundo mágico, você se teletransporta de volta para o mundo humano, e a escolha que você faz como caminho de volta determina como sua história vai avançar, então, você pode pular partes ou ver-se impotente para chegar a algum destino se a volta não te permitir acesso a alguma cena relevante na hora certa.
No mundo humano, você precisa tomar decisões que vão fazer Cyrus navegar entre as três facções que disputam o poder em Micropolis: a grande empresa Inside usa o poder da magia para criar tecnologia e lucrar com isso. Os Feiticeiros (Sorcerers) são pessoas que acreditam que o poder da magia deve ser compartilhado entre as pessoas, não comercializado, e os VEDs do título do jogo, são uma ordem mística ancestral dedicada a proteger a fronteira entre o mundo humano e o mundo mágico, e acredita que a magia deveria ficar do lado de lá da cerca.
Além dessas três facções, há os habitantes comuns de Micropolis, cuja economia e modo de vida se baseavam até então em mineração, e estão ameaçados pela Inside, e só querem continuar vivendo suas vidas e poderem beber suas cervejas no bar depois de trabalhar numa horrenda escala 6×1.
Do lado de cá da barreira mágica, as motivações de todos os grupos são sólidas, e a forma inicial como as pessoas se posicionam sobre suas decisões, também. Claramente, alguém teve uma ótima ideia e fez ótimas anotações. Mas claramente também, a pessoa faltou nas aulas de desenvolvimento de texto. Não sei se elas foram mal escritas no original, ou se foi uma deficiência na tradução, mas as falas deste jogo não fazem sentido na maior parte do tempo. Cyrus flertando me dá ódio, algumas das decisões parecem levar a direções completamente opostas às que você queria, e nem sempre é claro o que cada linha de diálogo quer dizer.
As escolhas aqui são mesmo muito importantes, no sentido de que há pelo menos umas 12 rotas diferentes que podem ser seguidas (pelo que eu descobri), entre mudanças menores e maiores (ao final de cada capítulo, você recebe uma informação de quais cenas que tinham opções você desbloqueou e quais foram suas escolhas). Uma das coisas que vai te manter com interesse no jogo é voltar para descobrir o que você perdeu, e quais resoluções seriam trazidas pelas outras decisões ou outros caminhos.
Infelizmente, porém, nem sempre suas escolhas levam a sentidos coerentes com o esperado, e em muitas ocasiões, elas parecem colidir com outros pontos que passaram da história, como se por causa de decisões novas, algumas anteriores fossem sobrescritas, e deixassem de ter valor. Ainda é uma história bem interessante, e, verdadeiramente, eu continuo jogando para ver quais caminhos perdi, mas a falta de coerência e coesão, além da tradução de qualidade questionável, tornam a experiência um pouco menos agradável do que deveria ser.
Jogabilidade
VED tem elementos distintos de jogabilidade, então, eu vou destacá-los individualmente.
O primeiro ponto é que ele é basicamente uma Visual Novel melhorada, na qual as suas decisões importam. Isso significa que você vai passar boa parte do tempo com textos na sua tela. O ponto positivo é que são textos 100% dublados, então, torna menos cansativo, e você pode acelerar a passagem dos textos (ótimo para jogar de novo).
A segunda parte, que é o grande destaque de marketing, é que essa Visual Novel vira basicamente um RPG de mesa, tipo Dungeons & Dragons. Durante suas explorações do mundo mágico, e ao tomar algumas decisões importantes para a história, você precisa rolar 1d20, e o resultado vai determinar seu sucesso ou fracasso, e uma consequência. Cyrus tem três atributos: Destreza, Magia e Força, e a cada vez que você faz um teste, você ganha 1/3 do progresso necessário para ganhar um ponto naquele atributo em específico, ou seja, a cada três testes, sejam sucessos ou fracassos, você sobe um ponto naquele atributo, que será somado ao resultado do dado. Para além da primeira vez, você pode optar pela dificuldade Modo História, que adiciona 10 pontos para cada atributo de Cyrus, causando basicamente um sucesso automático em todas as decisões triviais, e um grande bônus nos testes da história (há testes que precisam de 18 ou 19 para obter sucesso). Aqui, senti falta de consequências específicas para falhas ou sucessos críticos. Obter 1 ou 20 não faz diferença nenhuma, se a soma final dos resultados igualar ou superar o nível de dificuldade do teste. Sei que isso é algo complexo, mas é uma característica comum de todos os RPGs de mesa, então, seria legal ver isso implementado no jogo. Para quem criou mais de 10 mil falas, o que seriam algumas mais?
Falando em falas, ainda nos elementos de RPG, todo mundo que é NPC no jogo tem três atributos também, que é o quanto de Medo, Respeito e Amizade têm por Cyrus, e dependendo das suas decisões envolvendo essas pessoas, esses valores mudam, mudando também as opções de diálogos e desenvolvimento da história disponíveis.
A terceira, que para mim é onde o jogo é mais bem-sucedido, é o combate. Ele é aparentemente simples, mas com certa complexidade no que se refere a efeitos e consequências. Se você tiver bênçãos ou maldições, a cada turno, há 50% de chance de uma delas ativar (quanto mais você tiver, maior a variedade, você pode limpar todas num Altar de Purificação), e você tem Pontos de Ação que precisam ser gastos em movimentos. A cada movimento, você irá para a esquerda ou direita no “tabuleiro”, no qual há quatro espaços para os quais você pode se mover. Dependendo da direção que o oponente estiver no “tabuleiro” dele, você tem 20% de chance de errar ou 30% de chance de acerto crítico (o máximo no range do ataque). Os monstros também têm suas áreas de 20/30, e elas são demonstradas no chão, então, você precisa cuidar para não estar nas áreas sujeitas a crítico quando o inimigo for atacar. As lutas são em turno, e você sempre consegue ver quais os próximos movimentos, para se colocar em segurança, ou recuperar sua vida antes de um ataque inevitável.
No geral, o jogo vai bem em todas as partes, inclusive na árvore de habilidades, que é onde você tem maior poder de decisão de que estilo quer ter, mas ao mesmo tempo, faltam opções de desenvolvimento, e depois de um tempo, você vai ter atributos o suficiente para passar em quase todos os testes, tornando-os menos valiosos. Se os dados fossem mais importantes, ou se houvesse mais rolagens, ou se houvesse maior possibilidade de personalização de Cyrus, e isso permitisse alterar os estilos de luta, por exemplo, o jogo seria muito mais rico.
Um ponto positivo aqui é que o jogo tem um manual acessível a todo momento, além de acesso a um diário de quem são as pessoas nas partes de diálogos. Isso permite que você retome o fluxo das coisas sem se perder demais caso fique um tempo sem jogar e volte no meio do fervo.
Parte Técnica
Aqui, a gente vê o carinho que os desenvolvedores tiveram com o jogo. Vou já deixar claro que VED tem alguns problemas de desempenho no Switch, e em duas ocasiões, o jogo crashou. Não causa tanta perda, porque salva automaticamente depois de cada decisão tomada, mas é irritante quando acontece. Além disso, há alguns momentos de travamento nas telas de carregamento, quando você alterna entre as opções de coisas para ler, e levando em conta que há carregamento a cada vez que você se teletransporta, e isso é o cerne do jogo, isso pode ir se acumulando em muito tempo olhando pra tela preta, e depois de umas três delas, você já leu todas as informações disponíveis (muito úteis, por sinal).
Dito isso, o jogo é lindo. As artes todas feitas à mão são magníficas, especialmente num mundo em que cada vez mais, jogos, livros e propagandas caminham para o uso de imagens geradas por inteligência artificial. O ambiente sinistro do mundo mágico é muito rico e passa a sensação de opressão necessária, Micropolis e suas pessoas são bem distintas, e cada personagem recebeu atenção na hora de ser criada, claramente, mesmo os mais simples monstros, até cada um dos trogloditas e pessoas. As animações ficaram bem fluidas, e ajudam a dar movimento legal para as cenas quase estáticas, e isso ajuda bastante.
Além disso, o jogo é todo dublado em inglês, e as vozes são bem definidas e caracterizam bem cada pessoa. Gosto muito do detalhe de que quando Cyrus não enxerga, as pessoas são caracterizadas por desenhos contornados com as cores de suas personalidades (para Cyrus), e quando ele passa a enxergar, elas aí passam a ganhar forma real. Eu sinceramente preferia que ele continuasse sem enxergar, porque não gosto do clichê de que toda pessoa com deficiência quer se curar, mas o detalhe de haver essa mudança é algo muito precioso para mim.
Infelizmente, o jogo só tem opções de idiomas em inglês, russo e chinês simplificado (e não sei se também tem dublagem, ou qual a qualidade dos textos nesses outros dois idiomas), então, novamente, quem só entende português vai ficar de fora.
Conclusão
VED inova em diversos aspectos e traz uma evolução das Visual Novels ao acrescentar elementos de RPG de mesa nelas, além de um combate sólido. Com mais investimento, pode gerar um universo muito rico, mas, apesar de não ser um jogo perfeito, e das lacunas na história, ainda há muitas coisas positivas para se experimentar.aqui.
Análise feita com cópia gentilmente cedida pela Fulqrum Publishing
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