O ano era 1988, e Super Mario Bros. 2 (conhecido como Doki Doki Panic no Japão) era lançado. O título, pouco divulgado no ocidente, foi relançado em 1993 em Super Mario All Stars para o SNES 2001 no GameBoy Advance. Porém ainda no século passado, surgiu aquela que viria a ser uma das personagens mais relevantes na História do universo Nintendo, quiçá da indústria dos jogos até hoje – Birdetta.
Antes de dar início, como sempre, é extremamente importante ressaltar algumas coisas aqui. Vou me dar ao direito de abrir um parêntese. Afinal, estamos no mês do orgulho LGBT+ (ainda que no final dele). Há 51 anos, um grupo se revoltou contra a truculência policial, e iniciou protestos que entraram pra história. Muito além de um tema multicolorido nas fotos de perfil, a Switch Brasil tem orgulho de ter uma equipe diversa, incluindo nesse meio esta que vos escreve.
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Tempo do preconceito
Por aqui será dado o foco principal a questão de identidade de gênero, algo desde sempre presente na sociedade global. Temos como exemplo as Hjiras na Índia, as Kathoeys na Tailândia, muito antes das meras discussões de Twitter. Na virada do século XX, nomes como Lili Elbe, Dora Richter e Karl Baer ganharam notoriedade por serem as primeiras pessoas a passar por uma cirurgia de afirmação sexual. Não se trata de uma “modinha” passageira, afinal.
Fechando o parêntese, a boss de Mario 2 (conhecida como Catherine no Japão) tinha como características principais o tiro de ovos depositados em sua boca – algo um tanto quanto sugestivo para os jovens de 11 anos de plantão. Ao longo do tempo, ela foi ganhando diversas novas formas e identidades diferentes. Em alguns jogos, é descrita como “genderless” (algo como “sem gênero”), o que seria um indicativo de possível não-binariedade. Ela também já foi chamada de “namorada do Yoshi” em certas ocasiões ao longo do tempo.
A importância de Cathy
Mas vamos evitar nos tangenciar do cerne do texto; no caso, a identidade de gênero da nossa personagem principal. No manual ocidental do jogo, temos a descrição (hoje um tanto quanto ácida) de que “’ele’ (note as aspas) é um garoto que se identifica como uma moça, e prefere ser chamado de Birdetta”. É um tanto quanto difícil dissociar essa imagem do que seria o estereótipo conhecido de um indivíduo trans: a pessoa que possui a sensação de ter um corpo diferente ou alheio à sua própria percepção individual. E é exatamente esse gancho que eu quero fazer com você por aqui.
Apesar de estarmos falando de um espectro enorme, vamos nos ater aos princípios científicos. Sim, caro leitor, se você não sabe, o quadro trans indiretamente (endosse o indiretamente) é reconhecido pela ciência. Mais precisamente, com a disforia de gênero. Apesar disso não ser uma regra, grande parte das pessoas que se identificam de forma diferente aos impostos em seu nascimento sofrem das consequências desse desalinhamento.
Devido a exclusão social, muitas vezes motivada e encorajada até mesmo dentro da própria casa, sentimento de não pertencimento e crises de ansiedade engatilhadas por coisas supostamente “simples”: desde chamar por um nome não desejado até divisão por gênero em meios públicos. Isso catapulta a taxa de suicídio entre a população trans: cerca de 42% (incluindo esta que vos escreve, infelizmente), em comparação a média de 4,6% da população geral.
Na idade adulta, o indivíduo enfrenta obstáculos que fecham todas as portas à ela. Grande parte das mulheres trans acaba tendo que recorrer à prostituição de uma maneira degradante como única fonte de renda para a sobrevivência, correndo risco de vida de forma intermitente (como já evidenciado nos últimos dias). Por todos esses fatores acima, a expectativa de vida de uma pessoa transgênero é de apenas 35 anos, quase nada se comparado a média brasileira atual que é de 75 anos e meio.
Mas afinal, o que tudo isso tem a ver com Cathy (um dos apelidos nipônicos de Birdetta)? É que como você já percebeu, ela não pertence necessariamente aos domínios de uma mera ficção. É o Japão dos anos 80, afinal. Estamos a falar de uma sociedade em níveis de expansão exponenciais, porém ao mesmo passo, extremamente conservadora, onde papéis de gênero e expressão eram estritamente vetados a um grupo. Onde o assédio era tratado como algo corriqueiro, onde o androcentrsimo (o homem padrão como chefe de família) era uma tendência que parecia não ter fim.
Pioneira (não a primeira)
Mesmo fora da causa trans, a Nintendo ainda tem notoriedade no pioneirismo da representatividade em geral. Na pauta feminista, tivemos Samus como primeira protagonista a gerar impacto em um jogo “aparentemente” destinado ao público masculino, onde a mulher não se restringia a uma donzela em perigo, e sim a uma heroína capaz de se salvar – e salvar toda a galáxia de quebra, isso sem levar em conta o apoio – ainda que tímido – a alguns movimentos de orgulho LGBT+.
Também tivemos os Magypsies em Earthbound. Sua descrição apresentada por um dos NPCs os classifica como “Nem humanos, nem criaturas. Nem homens, nem mulheres”. Com seu visual um tanto quanto andrógino acaba por colocá-los mais do que nunca em uma categoria de não-conformismo de gênero.
E é claro, existem outros exemplos mais de personagens LGBT+ introduzidos ao longo do tempo. Sejam através de headcanons (artifícios e teorias quanto a algum personagem), ou de confirmações oficiais – esta última, um tanto quanto complicado, ainda que existente.
A indústria logo notou a importância da participação de mais camadas de representação do seu público, e os introduziu. Apesar de ainda nos anos 80 termos recebido personagens queer em jogos, muitas vezes eles eram introduzidos numa temática torpe e/ou degradante (como é o caso aqui). Porém, conforme o tempo avançou, alguns estereótipos foram caindo, ou se tornando retificados. Temos como exemplo Skyrim, onde o personagem principal pode se casar com certos NPCs, independente do gênero escolhido ao início do jogo. O mesmo ocorre na série The Sims (esta última adotada de forma calorosa pelo público LGBT+). Lembra de algum personagem assim? Conta aqui embaixo!
Com Birdetta, a Nintendo, de forma intencional ou não, contribuiu para levar essa discussão em diversos lugares, muito antes da questão trans vir à tona décadas depois. Através de uma personagem – mesmo que retratada de forma caricata – a casa de Kyoto muito provavelmente conseguiu despertar a sensação da própria percepção de pertencimento a outro gênero. De representatividade em várias pessoas ao redor do mundo.
Aliás importância dessa palavrinha, tão repetida nos últimos anos, é de levar às pessoas a noção de que elas não estão sozinhas, de que elas não são “estranhas”, e de que sim, elas tem espaço na sociedade, como qualquer outra pessoa, não sendo julgada por qualquer característica própria (ainda que na prática isso infelizmente não aconteça até hoje). Percebeu o tamanho do impacto de uma “simples” adição? Essa sempre foi uma pauta necessária na nossa sociedade. O assunto ter indo à tona apenas hoje não significa que ele seja mais ou menos importante que qualquer outro. Visibilidade, seja de quem for, é algo relevante e necessário. Ainda mais quando citamos grupos que historicamente sofreram discriminação e preconceito em vários lugares. E aqui, me reservo a dizer que não estou apenas me referindo a comunidade LGBT+.
Com tudo isso, não é muito difícil concluir a alegação de que Birdetta é sem a menor sombra de dúvida uma das personagens mais importantes da história da Big N, seja em pioneirismo, nessa “tal” de representatividade, ou na própria imagem. Ela reflete exatamente a ideia e o princípio dos jogos. Afinal de contas, o controle é para todos.
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